O meu nome é António. Cheguei aqui a esta cela há três dias. Este pequeno espaço escuro onde viverei nos próximos anos, ou quiçá para sempre. Tenho momentos de lucidez, suponho. Este espaço é pequeno demais, escuro demais! Tenho a certeza que o pouco que resta de límpido da minha mente se vai esvair nestas paredes húmidas. Estou aqui porque fiz justiça! Justiça mesmo, e não essas construções histéricas de homens que se julgam sábios para avaliarem, cenas obscuras e hediondas.
Mas sei que me amas, e quero contar-te a minha verdade.
Tinha eu cinco anos, caracóis louros, e a inocência dos meus olhos azul/mar, quando assisti pela primeira vez àquela cena que foi o fim da minha infância, e que se repetiu vezes demais. Quando vi projectada o que a minha vida seria ao ralenti! Meu Pai chegou a casa bêbado, eu e minha Mãe assistíamos ao concurso “Vaca Cornélia”, ele entra assim do nada e começa a espanca-la, ainda oiço aquelas pancadas ensurdecedoras, como a cabeça dela fosse a qualquer momento sair dos ombros e embater contra a parede. Ainda sinto o sabor do pânico colado no meu céu-da-boca, metálico com um travo a sangue escuro que se me entranhou na alma para sempre.
Hoje sonhei que me esvaia sangue escuro, que me colava a estas paredes, desaparecia nelas, misturava-me com elas, e delas saia sangue, muito sangue… Meu e todo esse sangue salpicado pelas pancadas brutais infringidas a minha Mãe. A minha cabeça lateja nesse som brutal!
Ainda acordo com esse cheiro de melaço de álcool e puta entranhado em casa!
Dizem que sou louco, louco?
Desde sempre que soube que tinha que o matar! Algum dia tinha que o parar! Anos e anos de sangue, suor e lágrimas! Ainda escuro os gritos e gemidos da minha Mãe na surdina na noite, aquele barulho da porta abrir, o medo a entrar em nós!
O sangue volta a cobrir-me, volto a misturar-me com essas paredes húmidas, o sangue jorra e não estanca até me levar, nessa viagem sem retorno.
Louco eu?
Maria Sá Carneiro
A verdade desta história como muitas que não são contadas , é que os anos de prisão , são todos aqueles em que se vivem em terror, em silêncio, em vergonha , a acumular sonhos de uma suposta justiça..., não há justiça que compense todo o sofrimento de uma criança a assistir a agressões dia após dia.
ResponderEliminarQuantos sonhos ficaram por viver enquanto uma criança esconde tanta dôr e tanto sofrimento !?
A Loucura , é este ser um relato ou uma história que existem por detrás de tantas portas de lares nesta nossa sociedade
Chocante, mas não condeno o Antonio.
ResponderEliminarSei que não devemos fazer justiça por nossas mãos, mas o sofrimento daquele ser desde criança durante anos a ver sua mãe sofrer e sonhos de menino desfeitos ,leva-me a compreender aquele acto de vingança, que só o levou a mais sofrimento.
Que hei-de dizer ao Antonio ?Que ainda pode haver Esperança numa vida melhor.
Azvix
ResponderEliminarInfelizmente há muito mais do que pensamos, e algumas mesmo ao nosso lado.
Tantas crianças vivem este drama amordaçadas pelo pânico e pela chantagem, em troca do silêncio, que por vezes as vai tornando um barril de revolta.
Isso Bertinha. Alguma esperança que a sociedade seja mais solidária e participante.
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